Entrevista exclusiva do Nutritotal com Marly Winckler, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) e com Eric Slywitch, médico nutrólogo, coordenador do Departamento de Medicina e Nutrição da SVB

NUTRITOTAL: Quais são as razões para se tornar um vegetariano?

MARLY: São muitos os motivos para alguém se tornar vegetariano, sendo os principais a saúde, o respeito pelos animais e pelo meio ambiente. Muitas pessoas que se preocupam em seguir o caminho da virtude também adotam o vegetarianismo.

NUTRITOTAL: A comunidade de vegetarianos tem crescido no Brasil?

MARLY: Cresce a cada dia o número de vegetarianos. Além disso, estamos nos organizando em rede. A Sociedade Vegetariana Brasileira foi criada em 2003 e já tem sócios em mais de 100 cidades espalhadas pelo País. Temos cerca de 15 grupos organizados e vários departamentos. O número de integrantes nas listas de discussão sobre vegetarianismo dobraram de tamanho nos últimos dois anos. A Veg-Brasil, uma das mais dinâmicas, tem cerca de 2000 pessoas trocando mensagens sobre todos os aspectos do vegetarianismo. O Sítio Vegetariano (www.vegetarianismo.com.br) recebe cerca de 3 mil visitas por dia e meio milhão de hits por mês. 28% da população brasileira afirmou em pesquisa recente do Instituto Ipsos que “têm procurado comer menos carne”.

NUTRITOTAL: Por que brasileiros tornam-se vegetarianos?

MARLY: Pelo mesmo motivo que outros povos: por compaixão pelos animais, porque está comprovado que uma dieta sem carne é mais saudável e pelo impacto negativo ao meio ambiente de uma dieta centrada na carne. O vegetarianismo é uma atitude ética e filosófica diante da vida. Não podemos recomendar um tipo de alimentação que é excludente, que não dá para todos. Quem vai ficar de fora? Não é difícil saber. O Planeta não agüenta essa dieta suntuosa, que gera enorme desperdício e destrói e contamina os recursos naturais. Não temos nenhuma justificativa para comer animais que foram criados e abatidos em condições execráveis.

A dieta vegetariana desde logo nos desassocia da crueldade com que são criados e abatidos milhares e milhares de seres indefesos que sentem dor e terror. O meio ambiente também se beneficia com a adoção da dieta vegetariana. Criar gado é uma forma muito ineficiente de utilização dos recursos, além de ser a principal responsável pela derrubada das florestas. O consumo de carne bovina é a principal causa das queimadas, do desmatamento, do assoreamento dos rios e da perda de biodiversidade, do uso e da contaminação das águas, entre outras mazelas ambientais, como a geração de quantidades exorbitantes de dejetos animais. A criação de gado é responsável pelo desmatamento de 93% da Mata Atlântica, 80% da Caatinga, 50% do Cerrado e 18% da Amazônia. Estes são alguns dos motivos. São necessários em média 7 kg de cereais e grãos para produzir 1 kg de carne de boi. Metade de toda a terra boa do mundo é destinada a pastagens. A indústria da carne é responsável por mais de metade da água consumida para todos os fins. Cada quilo de carne gerado em sistema de confinamento deixa para trás 7 l de excrementos, que não têm como ser absorvidos pela terra. Metade da colheita mundial de grãos é consumida pelo gado no mundo todo. Num mundo onde a fome é uma realidade, comer carne torna-se eticamente inaceitável.

A dieta centrada na carne provoca um efeito avassalador sobre a saúde das pessoas. Não há mais dúvidas a esse respeito. Várias organizações internacionais de renome como a American Heart Association (AHA), a Food and Drug Administration (FDA), o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a Kids Health (Nemours Foundation), o College of Family and Consumer Sciences (University of Georgia) e a Associação Dietética Americana (ADA) têm pareceres favoráveis ao vegetarianismo. A ADA, por exemplo, afirma inclusive que os profissionais da área da nutrição têm o dever de incentivar aqueles que expressam intenção de se tornarem vegetarianos. O vegetariano tem risco reduzido de doenças crônicas e degenerativas, como cardiopatias, câncer, diabetes, obesidade, doenças da vesícula biliar e hipertensão.

NUTRITOTAL: Quais os tipos de vegetarianos?

MARLY: Há várias categorias de vegetarianos. Os vegetarianos que consomem leite e seus derivados são chamados de lactovegetarianos; os que comem ovos, de ovovegetarianos; e os que comem ovos e leite, de ovolactovegetarianos. Há também os vegetarianos puros ou veganos, que excluem de sua alimentação todos os produtos de origem animal. Além de carnes, peixes, aves, laticínios (leite, manteiga, queijo, iogurte etc.), excluem ovos, mel, gelatina etc. Os veganos evitam o uso de couro, lã, seda e de outros produtos menos óbvios de origem animal, como óleos e secreções presentes em sabonetes, xampus, cosméticos, detergentes, perfumes, filmes etc.

NUTRITOTAL: Você acredita no ditado de que “somos o que comemos”?

MARLY: Sim, pois é como num carro: se colocarmos um combustível “batizado”, o carro não vai funcionar bem. A carne tem gordura saturada, vários antibióticos e, às vezes, até hormônios, por mais que sejam proibidos. Não devemos esquecer que metade de toda a carne comercializada no Brasil é clandestina, e por isso, não sofre fiscalização. Além disso, há o aspecto ético. Se semearmos sofrimento e dor, não podemos colher paz e felicidade.

NUTRITOTAL: Quais as vantagens e desvantagens em seguir uma dieta vegetariana?

MARLY: Em mais de 20 anos de vegetarianismo não encontro desvantagens relevantes em sua prática. Poderia citar talvez a questão social, mas os benefícios sobrepujam em muito essas pequenas dificuldades. E os benefícios realmente são imensos. Vou me ater apenas ao aspecto da saúde.

Segundo as nutricionistas Vesanto Melina e Brenda Davis “Uma dieta rica em vegetais atende, com mais freqüência, às recomendações atuais quanto ao percentual de gordura, carboidratos e proteínas do que as dietas onívoras. Segundo estas recomendações devemos cortar as gorduras, sobretudo as saturadas, dar ênfase a grãos, frutas, vegetais e aumentar o consumo de fibras”. Ora, esta é uma tarefa muito simples para um vegetariano.

Em uma dieta sem carne há menos possibilidade de contrairmos infecções bacterianas, como por exemplo, E. Coli, Campylobacter ou Salmonella. Doenças como a encefalopatia espongiforme bovina (BSE ou “doença da vaca louca”), o vírus de leucemia bovina (BLV) e o vírus de imunodeficiência bovina (BIV) encontrados em animais podem afetar a saúde humana.

Segundo o Dr. Neal Barnard, presidente do PCRM (Comitê Médico por uma Medicina Responsável, www.pcrm.org) vegetarianos e veganos vivem em média 6 a 10 anos mais que o resto da populaç&a
tilde;o. Já os Drs. Caldwell Esselstyn e Dean Ornish provaram, trabalhando de forma independente, que pacientes com artérias bloqueadas podem reverter sua condição e evitar cirurgia com uma dieta vegana com baixo teor de gordura. Segundo a Sociedade Americana de Câncer, pelo menos um terço dos óbitos por câncer naquele país está ligado à dieta. De acordo com o Dr. T. Colin Campbell, diretor do famoso Projeto China, um estudo epidemiológico sobre a relação entre dieta e saúde: "A vasta maioria, talvez 80 a 90% de todos os cânceres, doenças cardiovasculares e outras formas de doenças degenerativas podem ser prevenidas com a adoção de uma dieta vegetariana".

A Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeou um grupo de especialistas em nutrição de todo o mundo para avaliar essas pesquisas. O resultado, um documento técnico de 200 páginas, intitulado "Dieta, Nutrição e Prevenção de Doenças Crônicas", foi publicado em 1990. A conclusão foi: "As pesquisas médicas e científicas apontam para uma clara ligação entre fatores nutricionais e o risco de desenvolver doenças cardiovasculares, hipertensão, infarto, vários tipos de câncer, osteoporose, diabetes e outras doenças crônicas. Esse conhecimento é hoje suficientemente contundente para capacitar os governos a avaliar a qualidade dos padrões alimentares nacionais, detectar riscos e, assim, proteger sua população por meio de políticas que dêem preferência a alimentos saudáveis".

A posição de 2003 da ADA (American Dietetic Association) e da Associação de Nutricionistas do Canadá reúne os principais estudos científicos sérios sobre vegetarianismo. Eis os resultados:

• Redução das mortes por infarto (doença cardíaca isquêmica) em 31% em homens vegetarianos e 20% em mulheres vegetarianas (estudo com 76 mil indivíduos).

• Comparando a mortalidade por doenças cardíacas entre vegetarianos e semi-vegetarianos (no estudo considerado como consumidor de peixe ou carne 1 vez por semana), a mortalidade também é menor em vegetarianos.

• Níveis sangüíneos de colesterol 14% mais baixos em ovolactovegetarianos do que nos comedores de carne.

• Níveis sangüíneos de colesterol 35% mais baixos em veganos do que nos comedores de carne. Menor pressão arterial (redução de 5 a 10 mmHg) nos vegetarianos.

• Redução de até 50% do risco de apresentar diverticulite nos vegetarianos.

• Redução de até 50% do risco de apresentar diabetes nos vegetarianos.

• Probabilidade duas vezes menor de apresentar pedras na vesícula nas mulheres vegetarianas (estudo com 800 mulheres entre 40 e 69 anos).

• Os não-vegetarianos têm risco 54% maior de ter câncer de próstata.

• Os não-vegetarianos têm risco 88% maior de ter câncer de intestino grosso (cólon e reto).

• Pelo menor teor de proteínas e por melhorar os lipídios sangüíneos, a dieta vegetariana pode ser benéfica para os que sofrem de doença renal (principalmente os que não fazem diálise e apresentam diurese).

• O consumo de carne aumenta em até três vezes as chances de desenvolver demência cerebral.

• Uma dieta vegetariana sem derivados animais e com predominância de
alimentos crus reduz os sintomas de fibromialgia.

NUTRITOTAL: Quais as dificuldades de ser vegetariano? Como o vegetariano brasileiro pode obter apoio para continuar vegetariano?

MARLY: As dificuldades são inerentes a qualquer mudança que desejamos implementar em nossa vida. O vegetariano brasileiro pode encontrar apoio em várias listas de discussão sobre vegetarianismo, como a Veg-Brasil. Pode encontrar muitas informações em vários sites na internet e pode, sobretudo, encontrar respaldo na Sociedade Vegetariana Brasileira através de seus vários grupos e departamentos.

NUTRITOTAL: De que maneira a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) tem divulgado a dieta vegetariana?

MARLY: Organizando vários eventos por todo o país: palestras, oficinas, demonstrações culinárias, mostras de vídeos. Distribuindo conhecimento embasado, por meio de folhetos, atendimento por e-mail etc. Organizando também congressos, como o Mundial em 2004 e agora o Brasileiro e Latino-americano, onde teremos mais de 60 palestrantes muito qualificados para apresentar os diversos aspectos do vegetarianismo.

NUTRITOTAL: Quem apóia a SVB?

MARLY: Temos apoio no momento, sobretudo, de pessoas comuns, mas aos poucos os empresários começam a despertar para a grande oportunidade da alimentação saudável. Sabemos que o setor dos alimentos integrais, orgânicos e saudáveis é o único que está em expansão nos supermercados. Nosso futuro é promissor.

NUTRITOTAL: Qual a relação entre o vegetarianismo e a agricultura familiar (pequenas propriedades)?

MARLY: Promovemos o consumo ético e consciente. Pedimos que as pessoas modifiquem o que têm no prato, que passem a questionar a procedência de tudo o que consomem. Ora, quando fazemos isso, chegamos ao quadro necessariamente desolador da dieta centrada na carne, não só para os animais, para a saúde das pessoas e o meio ambiente, mas também para os produtores, sobretudo os pequenos produtores. O que retém o homem no campo são as pequenas propriedades, o cultivo de hortaliças, legumes, a roça enfim. A produção de carne está nas mãos de poucos empresários, que nem no campo vivem. Os agricultores são reféns destes empresários, tendo que hipotecar sua terra e produzir de acordo com os ditames destes empresários, que só pensam em lucro. O vegetarianismo tem uma contribuição a dar para esta grave questão da concentração da terra e da maneira de produzir alimentos.

NUTRITOTAL: Qual a relação entre o vegetarianismo e a agricultura orgânica?

MARLY: Os vegetarianos querem produtos de qualidade. Não é só a carne que tiramos do cardápio. Como o vegetariano é, via de regra, mais consciente daquilo que consome, até para se defender, ele acaba descobrindo a contaminação dos alimentos com agrotóxicos e prefere alimentos orgânicos. Agora, nós queremos orgânicos vegetarianos. Não queremos verduras orgânicas “adubadas” com sangue e ossos ou outros produtos de origem animal.

NUTRITOTAL: A aparência de um vegetariano é de ser uma pessoa magra, fraca, é verdade?

ERIC: Não, isso não é verdade. Apesar de os vegetarianos apresentarem um índice de massa corporal (IMC) geralmente menor do que os onívoros, esse índice se encontra dentro dos limites da normalidade. A falta de força é um mito e isso pode ser desmistificado ao se verificar que diversos atletas famosos, como Éder Jofre e Carl Lewis já eram vegetarianos ao
conquistaram as suas medalhas em torneios mundiais: Éder Jofre no boxe e Carl Lewis no atletismo.

NUTRITOTAL: É necessária a orientação de um nutricionista para aderir essa dieta?

ERIC: Essa pergunta freqüente pode ser respondida de diversas formas. Inicialmente eu diria que qualquer alteração dietética deveria ser realizada sob supervisão de um profissional de saúde. No entanto, devido às limitações de informações da maioria desses profissionais no que diz respeito à dieta vegetariana, o indivíduo acaba não tendo muitas opções de orientadores competentes. Por uma outra visão, eu poderia dizer que os onívoros têm mais urgência em procurar um acompanhamento nutricional do que os vegetarianos. Isso fica evidente ao analisarmos os estudos científicos que demonstram que a dieta vegetariana segue padrões mais saudáveis de escolhas alimentares, assim como apresenta redução marcante de incidência de doenças relacionadas à nutrição.

NUTRITOTAL: A dieta vegetariana pode ser seguida em qualquer idade?

ERIC: Sim! De acordo com a American Dietetic Association, desde 1993, é explícito o parecer de que a dieta vegetariana é adequada para todas as idades e ciclos de vida, como na infância, gestação, lactação, idade adulta e idosos.

NUTRITOTAL: Como um vegetariano consegue atingir as necessidades nutricionais diárias de alguns nutrientes, como vitamina B12, ferro e cálcio, já que suas principais fontes estão em alimentos de origem animal?

ERIC: A adequação de ingestão desses nutrientes deve levar em conta se o indivíduo vegetariano utiliza ou não ovos e laticínios. No caso da vitamina B12, ovos, leites e laticínios fornecem essa vitamina. Quando seu consumo é constante e em quantidades adequadas, não há problemas. No caso dos veganos, deve haver suplementação de B12. Esse é o único caso em que a suplementação é necessária.

O cálcio também pode ser obtido dos derivados do leite, para os que utilizam. No caso dos veganos, deve ser dada ênfase aos alimentos mais ricos em cálcio. Isso não se faz apenas considerando as hortaliças, mas sim os alimentos de todos os grupos alimentares. Estimular o uso do feijão branco, por exemplo, é uma maneira aumentar o consumo desse mineral. É recomendado também utilizar as médias de redução de ácido fítico dos grãos e evitar os alimentos com alto teor de ácido oxálico.

Já o ferro é de fácil adequação na dieta vegetariana. Os veganos apresentam um melhor estado nutricional de ferro do que os demais vegetarianos. Estudo publicado por Hunt et al, em 2003, mostrou que os vegetarianos apresentam a mesma incidência de anemia por deficiência de ferro do que os onívoros. Isso é facilmente entendido no contexto da dieta, já que a ingestão de ferro total em vegetarianos é sempre, ou quase sempre, maior do que a de onívoros. A ingestão de vitamina C, que estimula a absorção do ferro, é geralmente o dobro em vegetarianos, quando comparado com onívoros, assim como a de ácidos orgânicos. Da mesma forma, a absorção de ferro em vegetarianos tende a ser mais efetiva, já que os níveis de ferritina influenciam essa absorção. No caso dos vegetarianos, os menores níveis de ferritina costumam se associar com um melhor estado antiinflamatório. Lembre-se de que a ferritina é uma proteína de fase aguda.

Vale lembrar também que o ferro de origem animal não é “tão heme” quanto a maioria das pessoas pensa. Nas carnes, 40% do ferro é heme, sendo o restante não-heme. O armazenamento e o aquecimento reduzem o teor de ferro heme, levando a valores menores do que 40% ao se ingerir a carne. Dessa forma, ao ingerir 100 gramas de carne magra, contendo 3 mg de ferro, 1,2 g (40% do total) será heme (sem contar as perdas que ocorreram com a estocagem e o aquecimento). Desse total você absorverá cerca de 20%, ou seja, 0,24 mg (devemos absorver diariamente 1 a 2 mg de ferro por dia).

NUTRITOTAL: Você daria algum conselho para aqueles que estão inseguros em iniciar uma dieta vegetariana?

ERIC: Sugiro que participem do Congresso Vegetariano Brasileiro no Memorial da América Latina (4 a 8 de agosto de 2006) e leiam as nossas dicas no site da Sociedade Vegetariana Brasileira (www.svb.org.br).

NUTRITOTAL: A avaliação nutricional de um vegetariano deve ser diferenciada? De que maneira?

ERIC: A avaliação antropométrica não apresenta diferença na sua realização.
Já A avaliação através do inquérito alimentar dos vegetarianos pode ser um pouco mais difícil para o nutricionista que não lida com essa população, pois muitos vegetarianos utilizam alimentos incomuns à maioria da população, como tahine, trigo sarraceno, quinoa, dentre outros. Nada que o contato com esse grupo não resolva.

Os exames laboratoriais de vegetarianos mostram diversas alterações fisiológicas que o profissional deve saber interpretar. Essas alterações são benéficas e decorrentes de diversas mudanças metabólicas, especialmente associadas com o menor estado inflamatório desses indivíduos, principalmente os veganos. É necessário um conhecimento mais apurado para a interpretação adequada.

 

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