Módulo – Produção Animal
Silvio Luiz Negrão (Méd. Veterinário, Mestre em Zootecnia)
1. PANORAMA ATUAL DA PRODUÇÃO ANIMAL VOLTADA PARA ALIMENTAR A AGROINDÚSTRIA.
Acredita-se que os suínos apareceram na terra em torno de 40 milhões de anos atrás. É a partir destes animais que todas as raças atualmente conhecidas de suínos domésticos foram criadas. A domesticação dos suínos, durante muito tempo, foi creditada aos chineses, mas hoje há evidências que permitem afirmar que a domesticação dos suínos ocorreu a cerca de 10.000 anos atrás em aldeias do leste da Turquia. Na América do sul não existiam suínos até a chegada do “homem branco”. Foi Cristóvão Colombo que em 1493, em sua segunda viajem, desembarcou 8 animais na região de São Domingos. Posteriormente, Colômbia, Venezuela, Peru e Equador. Em 1532 o navegador Martim Afonso de Souza trouxe os primeiros “porcos” ao litoral paulista. Contudo, foi no início do século XX que começaram as primeiras experiências de melhoramento das raças antigas. Entre 1930 e 1940 apareceram as raças Wessex e Hampshire (Inglaterra), na década de 50 os Landrace (Dinamarca), na década de 60 os Large White (Inglaterra), estruturando-se o que hoje chamamos de “bancos genéticos”, e na década de 70 os primeiros animais híbridos (a).
Ao longo destes 40 milhões de anos os suínos passaram por inúmeras evoluções morfológicas e fisiológicas, sendo algumas por imposição da própria natureza, ou seja, do meio ambiente em que viviam, e outras, manipuladas pelo homem e motivadas pelas suas necessidades de melhor aproveitamento deste animal. O suíno da antiguidade vivia na floresta e alimentava-se de pastos nativos, frutas e pequenos animais. Era muito veloz e possuía dentes longos e afiados para se defender dos predadores. Seus membros dianteiros eram fortes e musculosos enquanto seu posterior era menor e formado por pouca massa muscular. Assim, apresentava uma conformação com 70% do volume de sua massa corporal na porção anterior do corpo e 30% do volume de sua massa corporal na porção posterior, a exemplo do que ocorre ainda hoje com o javali. Até o início do século XX o modelo de suíno que prevaleceu foi o chamado “porco tipo banha” que já não necessitava mais procurar alimento na floresta nem fugir de seus inimigos silvestres. Este animal, através de cruzamentos aleatórios manipulados pelo homem e com o fornecimento de alimentos em abundância, alterou sua composição corporal para 50% do volume de sua massa corporal localizada na porção anterior do corpo e 50% do volume de sua massa corporal localizada na porção posterior. Nesta época, este animal era considerado o ideal para as necessidades do homem, pois tinha grande capacidade de acumular gordura (banha) e carne.
A idéia de construção de um suíno moderno ganhou força a partir da década de 60 através do melhoramento genético com o cruzamento de raças puras. Pressionados por uma melhor produtividade e incentivados pelos consumidores que desejavam uma carne com menos gordura, os “melhoristas” a partir de cruzamentos genéticos e associados aos nutricionistas dos animais (zootecnistas), criaram linhagens de suínos que apresentam 30% do volume de sua massa muscular localizada na porção anterior do corpo e 70% do volume de sua massa muscular na porção posterior do corpo. Este animal apresenta pouco teor de gordura (de 55 a 60% de carne magra na carcaça) e maior extensão muscular nas regiões consideradas nobres (lombo e pernil). Ao visualizar um suíno selvagem (javali) e compara-lo com um suíno moderno percebe-se que ocorreu um giro de 180% na distribuição da massa muscular desta espécie animal.
Paralelamente, também no início da década de 60, nos mesmos moldes da suinocultura, nascia no Brasil a avicultura como uma atividade industrial que evoluiu rapidamente e que encontrou na suinocultura uma parceira fiel. O melhoramento genético atuou de forma semelhante com as aves de interesse comercial. Indiscutivelmente, os frangos de corte e as galinhas de postura foram as que mais mudaram. Em busca de uma valorização das chamadas porções nobres da carcaça (peito e coxas) e da precocidade, os frangos de corte sofreram uma rápida evolução morfológica e fisiológica, facilitada pelo seu curto ciclo reprodutivo, pela nutrição animal e justificada pela argumentação da necessidade de se produzir proteína animal para o consumo humano. Assim, no início da década de 60 nascia no Brasil a avicultura como uma atividade industrial.
Desta forma a suinocultura e a avicultura, como atividade produtiva, viveram dois cenários distintos. O evento fundamental desta mudança foi a descoberta da soja pelos povos ocidentais. Praticamente até o início da década de 60 o porco era criado pela sua capacidade para produzir banha. Este sistema de criação de suínos toma outro rumo depois de a soja, oriunda da China, conquistar espaço na agricultura ocidental, especialmente nos Estados Unidos. Com a soja, surgiram as grandes agroindústrias americanas e um poderoso lobby para derrubar a banha e implantar em seu lugar o óleo de soja e seu derivado nobre, a margarina.
Nos anos 70 os produtores eram independentes e de pequeno porte e os sistemas de produção eram em semiconfinamento em ciclo completo (o produtor possuía suas porcas e cachaços e os animais eram criados na mesma propriedade desde o nascimento até o abate). Nos anos 80, principalmente no sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), o sistema de produção transforma-se, incentivado pelas empresas de genética e por grandes frigoríficos. Consolida-se o sistema de integração. É no início desta década que o sistema de produção passa a ser em confinamento completo e consolidam-se esquemas nutricionais com base nos núcleos, na eficiência alimentar e na produção de carne magra. Desta forma a suinocultura e a avicultura deixam de ser atividades familiares de subsistência e hoje são atividades tipicamente empresariais, devido ao domínio dos empresários rurais (b).
No sistema de confinamento intensivo atualmente predominante, possível de ser chamado de industrial, o desempenho quantitativo dos animais é o que interessa, pois segundo seus defensores viabiliza a exploração economicamente, garantindo mesmo que precariamente, que a atividade sobreviva. Este sistema busca reduzir o espaço necessário em instalações, o trabalho, a necessidade de mão de obra, as perdas de energia e facilitar o controle dos animais (c).
Na produção de suíno ou frango de corte, a integração vertical ocorre quando uma empresa coordena todo o processo produtivo, fornecendo os reprodutores machos e fêmeas, ou os leitões (suinocultura), e os pintainhos de
um dia (avicultura) além de todos os demais insumos e assistência técnica. A agroindústria utiliza, assim, indiretamente as instalações do produtor rural, fornecendo os animais, ração, vacinas, medicamentos e acompanhamento veterinário. Ao produtor integrado compete o fornecimento dos demais insumos necessários à condução da atividade (infraestrutura e mão-de-obra). Quando o produtor rural não possui capacidade financeira de investir em infraestrutura, resta-lhe a alternativa de ingressar no sistema de produção integrada mediante contratos firmados com a agroindústria que determina as relações contratuais que regulam os sistemas integrados, passando a ser, desta forma, eterna mão-de-obra barata para as agroindústrias.
O Brasil ocupa uma posição privilegiada na produção de carne suína sendo o quarto produtor mundial com 27.800.000 cabeças abatidas no ano de 2002 e um rebanho estimado de 38.000.000 de animais. Na avicultura, o Brasil ocupa a segunda posição com 3.617.959.413 frangos abatidos no ano de 2002 e um plantel estimado de 30.251.000 reprodutores de corte e 3.814.100.000 pintainhos de um dia produzidos neste mesmo ano (d). Dentro deste cenário destaca-se o estado de Santa Catarina como sendo o maior produtor brasileiro de carne suína com 6.996.263 cabeças abatidas no ano de 2002[1] (e) e o segundo maior produtor brasileiro com 687.605.317 frangos abatidos no ano de 2002 (f). Desta forma a produção de suínos e aves, especialmente, em Santa Catarina, assume importância econômica e social porque além de ser fundamentada na pequena e média propriedade familiar, é modelo de produção para todo o Brasil.
O objetivo primário tanto da suinocultura como da avicultura é a produção eficiente de carne magra para o consumidor, e sua economia depende em grande parte da sua eficiência reprodutiva. As agroindústrias de suínos e aves operam a partir de um modelo de beneficiamento em série onde o ritmo de produção é orquestrado pela disponibilidade de matéria prima, ou seja, de suínos e aves. Partindo deste ponto de vista, fica fácil constatar que os trabalhos executados pelos suinocultores e avicultores são os pilares de sustentação da produção animal. Por sua vez, estes produtores são auxiliados pelos programas nutricionais, de melhoramento genético e de sanidade animal.
A suinocultura como atividade industrial, indiscutivelmente, assume importância na economia brasileira, pois gera emprego e renda para cerca de 2 milhões de propriedades rurais e uma faturamento em torno de R$ 12 bilhões por ano (g)2. O jornal Folha On Line de 1o. de setembro de 2002 às 10:26 horas, divulgou uma matéria intitulada “Agroindústria ignora crise e investe mais”. Nesta matéria, transcrevo aqui um pequeno trecho apenas no intuito de dimensionar o mercado em questão, os autores escrevem:
“As agroindústrias brasileiras, apesar da letargia que atinge a economia do país, planejam investimentos de centenas de milhões de dólares para aumentar a produção nos próximos trimestres. Os recursos para isso foram obtidos com os bons resultados dessas empresas no ano passado, principalmente com exportações.
(…) outra empresa que vem investindo pesadamente nos últimos anos na expansão de suas unidades. Com isso, a empresa teve resultados bastante positivos em 2001. As vendas cresceram 35%, o lucro líquido, 271%, e as exportações, 102%.”(h).
Sem dúvida esse é um bom exemplo da prosperidade desse setor que além de gerar empregos diretos e indiretos contribuem para o crescimento da economia brasileira com as suas exportações. Entretanto, no outro extremo do setor produtivo, as notícias não são tão positivas. A Revista Suinocultura Industrial no dia 2 de abril de 2003, disponibilizou em rede uma nota do Presidente da Associação Brasileira do Criadores de Suínos/ABCS, que diz:
“Após o longo período de prejuízos, que se caracterizou como o pior já enfrentado em toda a sua história, o suinocultor brasileiro, descapitalizado e endividado, sem crédito e, na maioria dos casos não conseguindo saldar seus compromissos nem com a entrega de todo o seu rebanho, não tem mais como suportar a situação e permanecer na atividade.
(…)
É profundamente desolador o fato de se saber que, na cadeia de produção/comercialização do setor existem situações absolutamente diferenciadas. Enquanto o criador, que assume os maiores riscos no processo, sucumbe à baixa remuneração do seu produto, outros segmentos envolvidos abusam nas margens de lucro a ponto de tornar o acesso à carne suína e seus derivados proibitivo para a maioria da população”. (i).
Infelizmente, apesar de ser inaceitável essa é apenas uma das faces da produção agroindustrial de suínos e aves. Ainda não foram abordados os aspectos de manejo, alimentação nem os aspectos ambientais, ou seja, nada se falou sobre a forma em que esses animais são criados nem o impacto dessa criação (esses assuntos serão abordados nos próximos colóquios). Nessa primeira parte o objetivo foi demonstrar que o suíno e o frango de corte não nasceu da prateleira do supermercado numa caixinha de isopor bem lacrada e potencialmente higiênica. Para a maioria das pessoas é mais fácil ter noção da exploração animal/ambiental/comercial/social de uma tartaruga ou uma arara colorida do que de um porco ou um frango. Disponibilizar e sociabilizar conhecimentos é o primeiro passo para o despertar da consciência, e para limpar a maquiagem das belas e românticas campanhas publicitárias a favor desse modelo de produção e consumo de carnes e derivados. Não se é contra a captação de recursos via produção muito menos através de exportação. Mas também, não se é a favor de escravizar milhares de animais e seus respectivos produtores ao impor um modelo de criação que apresenta como pré-requisito para os animais: confinamento, estresse, dor, sofrimento, dentre outros desprazeres; e ao produtor: investimentos estruturais, dedicação no trabalho e prejuízos acumulativos, ou então, transforma o produtor e proprietário da terra em mão-de-obra dedicada e incrivelmente barata. Porém, essa receita é altamente lucrativa para quem comanda o processo, uma vez que esse se posiciona de forma isenta aos olhos do consumidor desinformado.
OBSERVAÇÃO: Lembramos a todos que esse mater
ial está a ser preparado para publicação na forma de livro. Não pode ser copiado em parte ou no todo para fins de publicação por parte de outras pessoas, a não ser com autorização dos professores Sônia e Sílvio, e seguindo o que ficar acordado. Pode ser usado, citando-se os autores, para fins pedagógicos: em salas de aula, cursos de formação, debates. Os interessados nas referências bibliográficas poderão entrar em contato com o autor.
[1] ABIPECS – Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína. Não há uma estimativa oficial do crescimento da suinocultura em 2002. Porém, espera-se um aumento de 9% na produção de suínos em relação ao ano de 2001 que foi de 6.391.067 cabeças abatidas, desta forma 2002 fecharia com um abate de 6.996.263 cabeças.
2 EMBRAPA/CNPSA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária/Centro Nacional de Pesquisa em Suínos e Aves.